domingo, 6 de fevereiro de 2011

Continho

Arraial da Salvação

Sertão: lado esquerdo do Chico. Uma arraialzinho pobre. Quase abandonado. Era lá que eu morava. O senhor não se assuste, que a estória que vou contar nem sei se é realidade, sonho ou delírio. O sertão nos engana. O tempo parece que não prevalece. Um minuto e a eternidade são a mesma coisa.

Veio numa mula pelo de rato. Era alto, corpulento e barbudo, com o semblante triste. Mãe disse que seria chefe jagunço. Mas as roupas puídas e sem rifles negavam essa importância. Mãe sentiu medo, todos no arraialzinho sentiram, menos eu. Apeou e tomou água do poço de bomba, sedento. E depois, como quem se benze, lavou os cabelos e a barba. Estranhei. Mas fiquei espiando quieto. Ele soltou a mula no largo em frente a igreja e foi se sentar no alto da escadinha e lá ficou ao olhar fixo no cruzeiro que havia no meio do largo. Era a pura solidão.

De repente, vinda de não sei onde, uma figura esquisita, com cachinhos no cabelo, apareceu na frente dele, cheio de mesuras e salamaleques. Bizarrias. De imediato, gostei. E começou a falar para todos do lugar: “ Venham ver como são tolos os românticos! Como são idiotas! Jogam fora toda a vida na espera de amor que não veio, não vem e não nunca virá! Tolinhos.” Enquanto falava suas feições iam se alterando e as risadas assustavam. O barbudo a tudo ouvia quieto. Comecei a sentir medo e também a sentir pena do barbudo.

A figura andou por todas as portas e janelas, convidando os moradores para assistí-la. Meu pai, recém-chegado da lida disse: “É o Cujo!”. A figura se aproximou do homem e começou a falar alto, sátiro: “Sete anos de pastor, jacó serviu labão... blablablá. Tudo é sete: sete dias da Criação, sete cores do arco-íris, sete notas musicais, sete véus... Que patético! Eu posso ser o que eu quiser. Sou todo ilusão. Sim, porque tudo é ilusão. Principalmente este seu sentimento. Ah, pobres românticos! Se tornam estóicos em seu amor e ficam mais tolos ainda.”

O homem que até então estava quieto, começou a cantarolar uma linda canção, e eu pude ouvir o som de acordeon acompanhando-o naquela música que pairou sobre todas as coisas. A figura também se aquietou, estranhoso. Milagre! Parecia que havia um grande músico escondido dentro da igrejinha e o som do acordeon parecia o de um belíssimo órgão, acompanhando o homem. Só depois descobri que havia. Era um grande amigo do barbudo.

Os moradores, encantados com a música, saíram de suas casinhas e foram para o largo. E a figura, vendo que a plateia o aumentava, aproveitou disso. Fez mágicas, estripulias, hipnoses, levitação... e tudo quanto mais podia. Mas quando ele se voltou para o homem, a população perdeu o encanto e se escondeu nas casinhas. Ele disse ao homem: “ Não quero a sua alma, nem quero você, eu quero a sua recuperação mental. É, quero que voltes á razão. Mas você não quer, não é? Você quer passar o resto de vidinha medíocre escrevendo cartas e poemas de amor que ninguém nunca responderá. Lamentável!”

Ficaram ali até altas horas.Lua imensa. De repente o som lindo do instrumento invadiu o arraial com a melodia sentimental. E eu pude ouvir da boca do homem um versinho; “Ó, doce amada, desperta!”.

Na alvorada surgiu um cavalo preto no largo. Veio manso, elegante. Nunca vi animal mais bonito. Árabe. Trazia sobre o lombo uma fina seda cheia de desenhos, e só. Ficou ali, obediente ao homem. E do oriente surgiu um ser estranho vestido dos pés á cabeça e com o rosto todo coberto. Se aproximou do homem, reverente, e disse: “Você me chamou, e eu vim.” Pude ver o sorriso que se abriu nos lábios do homem e o brilho dos olhos dele. Alegria. A figura bizarra desapareceu. Depois o ser tirou toda aquela roupa e se revelou uma moça perfeita, distinta. Se abraçaram ao som de valsa brasileira.

Depois subiram no cavalo, e o animal majestoso, alado, foi cavalgando em direção ao norte. Pégaso.

É por isso que acredito sempre no amor, o senhor me entenda

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